Uma especialista no combate à violência contra a mulher destaca a ausência do Estado como um dos fatores que perpetua casos de feminicídio
Por Marcella Fernandes, do HuffPost
Especialista no combate à violência contra a mulher, a promotora de Justiça Gabriela Mansur, destaca a ausência do Estado como um dos fatores que perpetua casos de feminicídio, como a chacina em Campinas (SP), em que as nove vítimas foram chamadas de “vadias” pelo autor do crime.
“Enquanto não for prioridade de investimento público a destinação de verba, aprimoramento dos atendimentos, credibilidade da palavra da vítima, deixar pessoas especializadas em estratégias de políticas públicas e criminal, não vamos conseguir diminuir os índices de violência contra a mulher”, afirmou ao HuffPost Brasil.
Ela defende uma aplicação melhor da Lei Maria da Penha, em vigor há dez anos, e alterações para permitir a punição de crimes de ódio contra mulheres na internet, nos transportes públicos e do assédio de forma geral.
Na virada do ano, Sidnei Ramis de Araújo matou a ex-esposa, Isamara Filier, e outras nove mulheres. “Quero pegar o máximo de vadias da família juntas”, escreveu antes do crime.
Na mesma noite, Renata Rodrigues Aureliano foi queimada pelo ex-companheiro, Jéferson Diego Caetano da Costa, em Varginha (MG).
Confira os principais trechos da entrevista:
HuffPost Brasil: Nos dois casos de feminicídio noticiais, as mulheres haviam registrado boletins de ocorrência denunciando os ex-companheiros. Por que ainda assim foram mortas?
Gabriela Mansur: A maior parte das vítimas fatais de feminicídio já registraram algum tipo de denúncia e fizeram algum tipo de pedido de proteção e de alguma forma houve uma falha do Estado que esta mulher não obteve proteção necessária para evitar que ela morra.
É muito triste e lamentável a mulher que conseguiu romper a barreira do silêncio e bateu na porta do sistema de Justiça ainda assim não tenha tido a vida preservada.
A gente vê o reflexo de três coisas. Primeiro deixar o ônus da denúncia e pedido de proteção nas costas da vítima, como se ela tivesse que ir atrás não só na primeira denúncia.
A gente chama isso de rota crítica. A mulher percorre vários lugares e entidades até conseguir uma proteção efetiva.
O segundo ponto…
O segundo reflexo é a falha estatal de não ter dado esta proteção. Será que a palavra desta vítima está sendo posta em jogo? Será que está sendo dada credibilidade à palavra das mulheres.
Nós temos voz com a Lei do Feminicídio e a Lei Maria da Penha, a credibilidade que foi dada a casos de violência doméstica, apoio da mídia, mas será que a nossa voz está sendo escutada? Por que sempre a mulher é testada? Por que há banalização da violência?
Existe uma falha de dar credibilidade da palavra da vítima quanto da prestação juridicional propriamente dita.
E o terceiro aspecto?
O que eu vejo muito sintomático é o reflexo do machismo. Não só pela carta deixada com um discurso de ódio e misoginia em que há uma expressão do ódio contra as mulheres muito significativa, que chega até a matar muitas mulheres.
Ele chamou as mulheres de vadias, a lei Maria da Penha de Lei Vadia da Penha. Há também a dificuldade da sociedade de saber aceitar a igualdade material de direitos entre homens e mulheres.
Não só pela carta, como também pelos comentários e compartilhamentos nas redes sociais colocando a culpa na mulher em uma tentativa de justificar a ação deste homem. (…)
Não se pode desqualificar a vítima e isso eu vejo muito. Mesmo quando a vítima foi morta são trazidos fatos desqualificando a mulher, com uma foto ou qualquer situação que aos olhos de outras pessoas possa colocar a honra dessa mulher em jogo.
A chacina chamou atenção do País, mas não houve resposta dos órgãos federais. Isso mostra que o assunto não é prioridade para o poder publico?
Exatamente. Tem de mudar a cultura, ter não só no currículo escolar, mas também campanhas educativas com “machismo mata”, “não bata em mulher”, “a mulher pode ser o que ela quiser”. Isso é salutar.
Mas para mim que trabalho com violência contra a mulher e enfrento obstáculos no dia a dia para proteção dessas mulheres eu acho que a causa da mulher ainda não é prioridade.
Enquanto não for prioridade de investimento público, destinação de verba, aprimoramento dos atendimentos, credibilidade da palavra da vítima, deixar pessoas especializadas em estratégias de políticas públicas e criminal, enfim, enquanto não for prioridade não vamos conseguir diminuir os índices de violência contra a mulher.
Houve avanços?
A gente já avançou muito, conseguiu salvar muitas vítimas, mas temos que avançar porque até hoje os índices de violência contra a mulher não diminuem.
As mulheres denunciam mais, têm mais acesso, mas depois que denunciam conseguem proteção? A violência em si diminuiu? Não? Parece que a violência aumentou a cada dia.
Ou seja, qual o reflexo da Lei Maria da Penha na sociedade? A conscientização das mulheres. Mas não há conscientização dos homens de respeito às mulheres, que nós somos titulares de direitos e que não se justifica nenhuma violência contra a mulher. A causa tem de ser prioritária.
Tem de ser uma demanda como é o combate à corrupção. Somos o quinto país do mundo em índices de violência contra a mulher e um dos últimos países do mundo nas políticas de igualdade de gênero.
Estudos apontam dificuldades dentro da estrutura de atendimento a casos de violência contra a mulher, incluindo o fato de alguns profissionais de delegacias especializadas atribuírem ao comportamento da mulher a causa da violência. Como mudar isso?
O machismo é estrutural. A banalização da violência contra a mulher é estrutural então você precisa de um pacote de estratégias para modificar esse cenário. (…)
Na Lei Maria da Penha há previsão de capacitação de profissionais, com sensibilidade para atender os casos. Mas o que um delgado precisa de estrutura.
Ele precisa de um psicólogo, um assistente social, estagiário, alguém para acompanhar a mulher. Não há a coleta de provas da forma como tem de ser feita.
Tudo isso tem de ser modificado com investimento nessas delegacias para que o atendimento seja humanizado.
É mais uma questão de aplicar as leis atuais do que de criar novas leis?
A Lei Maria da Penha e a do feminicídio são muito boas, mas há leis que faltam para uma punição efetiva. Por exemplo, falta tirar o prazo de seis meses para a representação de crimes de estupro contra maiores de 18 anos.
Em seis meses a mulher tem um curto espaço de tempo para se conscientizar, ter coragem, enfrentar o trauma. Eu vejo também os crimes cometidos pelas mulheres pelos meios virtuais… nós não temos uma legislação específica.
Não há uma legislação específica para o assédio em transportes públicos. Nós precisamos porque isso acaba sendo apenas uma contravenção penal. Então essa mulher acaba tendo nenhuma proteção.
Como uma nova legislação seria mais fácil enquadrar como crime esses comentários de ódio contra mulheres na internet?
Nós temos alguma tipificação que consegue adequar (esses casos) nos tipos penais existentes. Mas não há legislação específica e há essa necessidade porque as mulheres estão sendo extremamente agredidas pelas redes sociais.
Acabam violando a honra dessas mulheres com posts de fotos íntimas, de conversas íntimas, que chamamos de pornografia de revanche.
A falta dessa legislação específica encoraja pessoas a cometer crimes que em menos de um minuto viralizam, acabam com a imagem dessa mulher num curto intervalo e você perde a possibilidade de saber de onde partiu essa violência.
Nós não temos ainda um trabalho de atuação específica não só por parte da polícia, como também do ministério público e do poder judiciário.