Uma Indiana de 40 anos cometeu suicídio em janeiro deste ano logo após um vídeo do estupro coletivo do qual foi vítima ter sido compartilhado pelo WhatsApp.

Geeta* era uma mulher valente. Atuava como profissional de saúde pública na zona rural da região onde vivia – um trabalho que exigia caminhar sozinha pelos vilarejos, algumas vezes após o anoitecer, e visitar as casas de estranhos.

Sua renda sustentava toda a família, incluindo o marido, que sofre de alcoolismo. Eles moravam em uma casa de tijolos que não tinha porta ou banheiro, mas Geeta orgulhava-se de ter conseguido dar educação aos três filhos adolescentes – uma menina e dois meninos.

No final de 2015, um morador de uma vila próxima a viu trabalhando no parto da mulher do irmão dele. E começou a persegui-la.

As ameaças tiveram início quando Geeta se recusou a conversar com ele. Khushboo*, amiga e colega dela, conta que o homem a parou na rua, tomou seu celular e disse: “Se eu encontrar você sozinha, não vou te deixar ir.”

Geeta certamente já tinha ouvido os relatos sobre abusos sexuais cometidos nos vilarejos onde ela trabalhava.

Dezoito meses antes, o Estado de Uttar Pradesh virou manchete quando duas garotas foram estupradas e mortas em Badaun.

Ela provavelmente também sabia que, pela cultura patriarcal da região, poderia ser considerada culpada por “convidar” as investidas sexuais de homens – mesmo que fossem não desejadas, intimidativas e violentas.

Sem ter a quem recorrer

Na última vez em que foi chamada para trabalhar no vilarejo do homem que a perseguia, Geeta disse a Khushboo estar com medo de ir sozinha. A amiga se ofereceu para fazer a visita com ela – e ficou preocupada ao vê-lo rondando a área.

Khushboo pediu então que Geeta fosse até os anciões da vila e revelasse a eles o problema. Mas, convencida de que qualquer pedido poderia se voltar contra si, ela se recusou. “Só vão encontrar culpa em mim”, disse na época.

Dias depois, quando as duas voltaram à vila para vacinar crianças contra a pólio, Geeta contou que algo terrível havia acontecido.

O homem e três amigos tinham lhe seguido – eles a seguraram, rasgaram suas roupas e a estupraram.

Ilustração de GeetaImage captionGeeta virou alvo de comentários após vídeo ser divulgado

Apesar de abalada, relata Khushboo, Geeta não estava a ponto de cometer suicídio. “Eu disse a ela: ‘nós estamos todas ao seu lado; não faça nada de drástico'”, conta a amiga.

Naquele momento, Geeta realmente não estava planejando morrer – ela pensava, inclusive, em procurar a polícia. “Vou delatá-los. Vou descobrir os nomes dos homens que abusaram de mim e colocá-los na cadeia.”

Temores confirmados

Mas antes que isso ocorresse, um vídeo mostrando o estupro começou a circular no WhatsApp.

Dentro de algumas horas, as imagens estavam sendo assistidas por homens e as mulheres da vizinhança – que as comentavam, aos sussurros.

“Ela me ligou”, conta Khushboo. “Disse que estava difícil de sair de casa porque os vizinhos estavam sabendo (do estupro).”

“Ela estava preocupada e me perguntou se alguém na minha vizinhança sabia”, lembra a amiga.

A intuição de Geeta estava certa: ela acabou sendo considerada, aos olhos do povo local, culpada por ter “atraído” os homens.

“Naqueles últimos dias, ela estava muito triste”, conta Khushboo.

“Não estava nem se alimentando direito. Um dia antes de morrer, me disse que tinha ido ao médico e havia contado tudo a ele.”

A reação do profissional teria sido a seguinte: “Vá para casa e fique quieta. Tudo isso é culpa sua.”

Ela procurou ainda o ex-chefe do vilarejo, que também disse: “A culpa é sua, não há nada que possamos fazer.”

Foi o baque final. Na tarde seguinte, Geeta foi encontrada à beira de uma estrada na periferia da vila.

Espuma saía de sua boca – ela morreu antes que pudesse ser levada ao hospital. A autópsia confirmou as suspeitas de morte por envenenamento.

Geeta, ilustraçãoImage captionVítimas de estupro muitas vezes não têm a quem recorrer

Triste realidade

O estupro e condenamento público de Geeta não é um incidente isolado.

A Índia tem testemunhado uma série de casos de compartilhamento de vídeos de estupros coletivos, todos filmados com celular.

Em agosto de 2016, o jornal Times of India revelou que centenas – talvez milhares – de imagens mostrando abusos sexuais estavam sendo vendidas diariamente em mercados de Uttar Pradesh.

O dono de uma loja afirmou à publicação: “O pornô é passado. Esses crimes da vida real é que estão na moda.”

O jornal ainda ouviu outro vendedor dizer a clientes que eles poderiam até mesmo conhecer a garota das gravações mais “quentes” do momento.

Sunita Krishnan, ativista responsável por uma ONG de combate ao tráfico sexual em Hyderabad, disse recentemente à Suprema Corte do país que havia coletado mais de 90 vídeos de estupros nas redes sociais.

Pavan Duggal, advogado na Suprema Corte, disse à BBC que os juízes ficaram chocados com dois relatórios sobre estupros coletivos cujos vídeos circularam pelo WhatsApp.

Eles enviaram uma ordem especial ao órgão indiano responsável por investigações para que os suspeitos fossem identificados e levados à Justiça.

Geeta e autoridades, em ilustraçãoImage captionAutoridades locais culparam Geeta pelo ataque

A corte também solicitou que o ministro de Tecnologia da Informação examinasse medidas para interromper a circulação desse Leia matéria completa aqui.

Fonte: BBC Brasil